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  Ana chegou em casa cansada. Uma velha, mas bem cuidada mansão separada da cidade e cercada por árvores era seu lar. Abrindo a porta, sentiu que tirar os seus sapatos e sentir o chão frio sob suas solas era exatamente o que ela necessitava para refrescar um pouco.  Cansada e não necessitando mais de seus óculos para hipermetropia, ela os tira e coloca sobre o criado. Andando até a cozinha, seus belos e cansados olhos azuis foram de encontro com o bebedouro. Pegando um copo de vidro e enchendo ele de água gelada, ela o levou em direção a sua boca, mas seus olhos, no entanto, captaram um ponto preto no copo. Devido o fato de ser velha, Ana acabava dividindo sua casa com diversos seres. Entre os mais comuns, insetos. Não é como se ela os odiasse, pelo contrário, ambos conseguiam conviver em harmonia desde que essas criaturas suicidas não se encontrassem despercebidas debaixo de seu andar ou a incomodasse. Encontrar uma formiga em seu copo definitivamente a incomodou. Com uma expressão vazia, Ana pegou a formiga entre os dedos e a tirou da água, esfregando o seu indicador na pia de porcelanato, esmigalhando o inseto.

  Ruan estava em seu apartamento. Sempre preocupado com sua irmã, ele tentava intensamente entra em contato com ela sem sucesso. E então a tempestade mergulhou a todos numa profunda escuridão.  Ao despertar, se encontrou sobre um chão claro e vasto, dominado por estruturas colossais. Ao tentar caminhar, no entanto, se viu limitado por uma parede invisível que se estendia vários metros sobre ele. Sua irmã veio em mente, e a preocupação com ela logo tomou conta. Ele considerou escalar a superfície, que se provou lisa demais para fornecer qualquer apoio Uma série de estrondos fez com que ele se assustasse e percebesse sua posição.

  O furacão havia feito com que ele, de alguma forma, encolhesse para o tamanho de um inseto, e agora ele se encontrava no interior de um copo de vidro. Seus pensamentos, no entanto, logo se voltaram para o estrondo, que agora ele reconhecia como passos. Impossibilitado de escalar a estrutura lisa do copo, Ruan se acovardou contra a parede do recipiente e começou a gritar por ajuda.

  Percebeu a presença de uma mulher adentrar a cozinha e se aproximar do bebedouro. Uma roupa casual, que consistia  em uma blusa e jeans, envolvia seu corpo. As mãos pálidas que agarraram o copo contrastavam com o esmalte vinho e logo ele se viu debaixo do filtro, ciente do que lhe esperava.

  “HEY! NÃO, POR FAVOR, ME VEJA! EU ESTOU NO COPO! POR FAVOR, NÃO QUERO MORRER AFOGADO!” gritou Ruan com uma voz cada vez mais chorosa e enfraquecida, até sumir em meio ao som da água caindo.

  Apesar da pressão da água ter lhe atingido com uma força impressionante, Ruan se viu lutando para flutuar até a superfície, que parecia cada vez mais distante com o volume crescente da água. Perdendo as esperanças, ele percebe dois olhos azuis imensos o analisando.

  Dois dedos, em forma de pinça, entram no copo e retiram seu corpo surrado da água. Cuspindo a água com que se afogou, ele recolhe forças para agradecer a moça, porém logo é interrompido pelo movimento do dedo, que o esmaga contra o material claro da pia e faz um rastro de sangue ao ser recolhido.

  Livre do incomodado proporcionado pela existência da formiga em seu copo, Ana finalmente saciou sua sede. Olhando para o rastro deixado pelo inseto na pia, ela jogou água nos restos mortais e os empurrou em direção ao ralo da pia, apagando quaisquer indícios de existência daquele ser. Para ela, isso apenas significava tirar a mancha que contrastava com o material claro.

  Caminhando em direção à sala, ela parou na frente de um quadro. Deus, como ela sentia falta de Iran. Ela se arrependia amargamente de nunca ter dito a ele os seus sentimentos mais fortes, reprimindo-os na tentativa de manter a harmonia imutável que existia devido à amizade entre os dois. Qualquer coisa a mais poderia interromper essa paz, essa amizade. E Ana deixou esse medo tomar conta de si.

  Ele havia desaparecido durante a tempestade anos antes. O furacão que atingiu o Rio De Janeiro danificou severamente a cidade e fez com que diversas pessoas simplesmente desaparecessem. (o que acabou servindo de motivo para a mudança para uma área mais afastada). O que ela não daria para tê-lo de novo...

  Um suspiro. Percebendo seu estado de hipnose, ela chacoalha a cabeça na tentativa de voltar a si mesma e caminha para a sala, deitando no sofá para assistir televisão, estendendo suas pernas sobre o sofá, a sola de seu pé empoeirada pelo chão. Percebendo que poderia sujar o sofá, ela confere a planta de seu pé, apenas para retirar a carcaça de uma formiga que havia sido esmagada em seu calcanhar com certa indiferença. Ela joga o corpo achatado para longe e volta sua atenção para a televisão. Apenas mais um inseto suicida que decidiu ficar em seu caminho.

  Enquanto isso, Iran e Marcelo voltam para dentro do ônibus, ainda incrédulos da situação. Iran olha para Ana, que apresenta uma feição de espanto, como se acabasse de ter presenciado a aparição de um fantasma.  Sem ainda entender nada, ele apenas tem uma certeza: eles precisam sair do chão aberto e contatar os outros grupos se esperam serem percebidos.

 

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